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31 agosto 2009

O Globo Perdido

Citado do Público:

O globo perdido de Schissler foi ao médico e quer ser tesouro nacional


Historiadores de ciência e conservadores de arte estão intrigados com um globo celeste do século XVI, assinado por um construtor de instrumentos científicos que trabalhou para Tycho Brahe, exposto no Palácio Nacional de Sintra desde a década de 40.

É uma raridade mundial que andava perdida, dizem os especialistas, baseados no pouco que já se sabe sobre a peça que já é candidata a tesouro nacional.

Para saberem mais acerca do globo até lhe fizeram uma TAC.


Inês Ferro, directora do Palácio Nacional de Sintra é conservadora há 26 anos. Mas nunca tinha visto um doente assim. "Tenho uma ideia de objectos submetidos a exames de química e de raios X. Mas TAC nunca tinha ouvido falar."

Um globo de cobre dourado, que não se sabe como, nem quando, chegou a Portugal, veio da casa-forte do Palácio das Necessidades para o Palácio Nacional de Sintra em 1941. Até que olhos mais atentos olharam para ele e constataram que se estava perante uma verdadeira raridade.


A consulta foi no dia 22 de Março. Levaram o globo de cobre ao colo até Lisboa, devidamente acondicionado, e colocaram-no, tal como um doente frágil, num aparelho de TAC, no Instituto Português de Oncologia, a um domingo.

"As imagens revelaram uma estrutura interna completamente metálica e suportada por um eixo central fixo, composta por 12 arcos aparafusados a duas calotes e unificados por um anel transversal, uma estrutura insólita que nenhum dos especialistas em globos previamente consultados tinha antecipado", descreve ao pormenor Samuel Gessner, historiador de ciência suíço, investigador do Centro Interuniversitário de História das Ciências e da Tecnologia, especialista em instrumentos científicos.

Pensava-se que o interior do globo seria de madeira.


Do exame resultaram imagens típicas de uma TAC, onde é evidenciada a estrutura interna do globo, um esqueleto, parecido com uma esfera armilar. Uma imagem tão bonita que acabou por ser adaptada para símbolo do Centro Interuniversitário de História das Ciências e da Tecnologia. "Foi uma emoção", confessa Inês Ferro.


O globo construído em 1575 por Christoph Schissler é uma raridade pelo seu tamanho, cerca de 22 centímetros de diâmetro, e pelas particularidades que apresenta, todo em cobre e talvez com douradura em amálgama de ouro.

Mas a constituição exacta da liga metálica também está a ser investigada pela equipa de Ana Mesquita e Carmo, física do Laboratório de Conservação e Restauro José de Figueiredo, do Instituto dos Museus e da Conservação (IMC), que participou no restauro da Custódia de Belém. No laboratório do IMC, o globo de Schissler foi já submetido a mais exames rigorosos, de fluorescência de raios X, para se apurar a sua verdadeira constituição.


Schissler era um dos construtores de instrumentos científicos mais famosos do cientificamente fervilhante século XVI.

São trocas de correspondência entre o astrónomo dinamarquês Tycho Brahe e Schissler, apesar de Brahe (com quem Kepler trabalhou) ter conhecidas a sua própria oficina. Desconhece-se, contudo, se da troca de correspondência chegou a resultar a construção de instrumentos por Schissler para Brahe.

"Mas sabemos que Tycho Brahe passou por Augsburgo em 1575", lembra Samuel Gessner sobre uma ténue pista que pode ligar o globo de Sintra a Tycho Brahe.


O astrónomo dinamarquês fez as mais precisas observações astronómicas da época e os seus dados ajudaram Kepler as construir as leis que desafiaram Aristóteles e Ptolomeu e ajudaram a retirar à Terra o estatuto de centro do Universo.

Este conceito, que marcou o Renascimento, já fora denunciado por Copérnico e depois acabou por ser confirmado pelas observações de Galileu, já no século XVII.

Saídos da oficina de Schissler, em Augsburgo, na actual Baviera alemã, existem hoje apenas dois globos: um deles, um globo terrestre, está no Observatório de Greenwich, em Londres; e outro, o seu par celeste (normalmente era sempre feito um par) pertence a uma colecção privada não identificada.

Mas são globos mais pequenos do que este exposto em Sintra.


Deste tamanho, Samuel Gessner diz que são conhecidos poucos. Um globo islâmico que está no museu Smithsonian de Washington e outro em Cracóvia, na Polónia. "Normalmente, os globos de metal eram mais pequenos", lembra Samuel Gessner.

Mas o facto de a família Fugger, banqueiros detentores do monopólio de minas de cobre, ser natural de Augsburgo, pode explicar o tamanho invulgar e a riqueza deste globo metálico. Há até registo de uma encomenda de um globo, de grandes proporções, em cobre, feita a Schissler pela coroa espanhola. "Mas esse seria apenas de cobre e maior. Provavelmente, não se trata do mesmo globo."

E está por apurar se este globo celeste também alguma vez teve um par terrestre.


Estácio dos Reis, comandante da Marinha, e também ele especialista em instrumentos científicos, já tinha escrito um artigo científico sobre este globo e sobre a sua importância.

Mas foi só em Setembro de 2008 que os olhares atentos de um grupo de especialistas do Comité de Instrumentos Científicos (SIC), reunidos num simpósio organizado pelo Museu de Ciência da Universidade de Lisboa, fizeram uma visita a Sintra propositadamente para ver este globo. E nem queriam acreditar no que encontraram.


Este globo, agora no centro das atenções, esteve durante anos na Sala das Pegas do Palácio Nacional de Sintra. Mas acabou por ser mudado para a Sala D. Sebastião, para ser visto mais de perto por causa dos relevos, lembra a directora do Palácio Nacional de Sintra.

Inês Ferro realça a beleza dos relevos quinhentistas do objecto, inspiradas nos gravuras de Dürer.

Foi na Sala D. Sebastião que os especialistas internacionais o observaram em Setembro do ano passado.


"É belíssimo. Foi inspirado num outro globo mais pequeno, celeste, impresso, de Caspar Vopelius, 40 anos mais antigo, que está em Colónia, na Alemanha", diz Gessner sobre outro globo quinhentista que o historiador tem estudado para uma análise comparativa.

Pega numa lupa, aproxima-se e acrescenta: "Pode ver-se a data e a assinatura do construtor", afirma olhando para a parte inferior do globo. "E o escudo da cidade de Augsburgo, para além de uma escala de brilho das estrelas, tal como Ptolomeu definia."


O desafio agora é reconstruir a história desta raridade: Inês Ferro diz que já se conseguiu excluir uma hipótese sobre a sua origem, que era a menos interessante de todas: "Havia uma hipótese de ter sido adquirido em leilão na década de 1930, quando se compraram várias peças para completar colecções de época, mas essa hipótese está afastada", diz, baseada no facto de já se saber que veio do depósito da família real, guardado no cofre-forte do Palácio das Necessidades, para Sintra em 1941.

"Não foi comprado."


O próximo passo será verificar se a peça está identificada nos arrolamentos dos bens dos palácios feitos pela República em 1910. "Também pode ter vindo para Portugal com D. Fernando II", diz sobre o rei consorte criado na Áustria, pai de D. Pedro V e casado com a rainha D. Maria II.

"Estamos a investigar." Mas se não se conseguir reconstituir a história perdida do globo a partir de Portugal, Samuel Gessner diz que se pode ainda tentar via Augsburgo: "Podemos começar a reconstituição ao contrário, talvez consultando as listas de encomendas feitas à casa Fugger".


Para já, Inês Ferro candidatou a peça ao estatuto de tesouro nacional, atribuído pelo Instituto dos Museus e da Conservação: "Candidatámos três peças do Palácio Nacional de Sintra, uma delas foi o globo".

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